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BENEDITAS QUE A LINHA DO TREM LIGA E A NOIVA DO BANHADO

 

Conto ficcional a partir de lenda popular de relato oral de

Benedita Ferreira dos Santos Cândido

por Guilherme Venancio

 

Duas mulheres e seus casamentos. A primeira se chamava Benedita, eu a conheci em morte. No final do século XVIII, época em que São José ainda era uma cidade bucólica e muito pequena, e não havia estradas e rodovias de asfaltos que interligassem as cidades às capitais. Todo transporte de cargas e passageiros era feito por malha ferroviária que cortava a cidade, passava pelo Banhado e desembarcava pessoas no bairro de Santana.

Perto dessa estação ficava a Igreja Matriz de São José. Como única igreja da cidade na época, era responsável por celebrar casamentos, batizados e missas para a população joseense. Era também um templo religioso estratégico, justamente por receber pessoas que chegavam a todo instante na estação de trem.

Benedita estava noiva de um caboclo bem apessoado, que não descansou enquanto não levou a moça pro altar. Era flor pela manhã, uma maçã pela tarde e juras de amor ao anoitecer. Ela cedeu, se enamorou pelo rapaz e pelas palavras bonitas que ele lhe entregava.

Foi quando aceitou se casar com ele. Preparou tudo. Um vestido branco, com uma cauda comprida, todo bordado com flores de linha de cetim branca. A igreja tinha uma decoração modesta, somente algumas flores na entrada e no caminho até o altar. Uma pequena festa para comemorar, no quintal da casa dos pais, também havia sido preparada.

Ele colocou a aliança no dedo dela, ela colocou a aliança no dedo dele. Mas, antes mesmo de sair da igreja, o rapaz se arrependeu, desistiu de abandonar a vida de solteiro e, correndo sozinho embaixo da chuva de arroz, foi em direção à estação de trem em Santana e foi embora, levando nada além de palavras bonitas soltas no tempo e a roupa do corpo. Ninguém sabe para onde.

Benedita, desgostosa da vida e dela própria, se sentia tapete de porta onde tem que se limpar os pés antes de entrar. Colocou-se a vagar sob os olhares dos convidados e das janelas que espelharam a notícia da noiva abandonada. Foi em direção à linha do trem que passava pelo Banhado, à procura de seu marido, acompanhada das vozes de crianças que hora a acalentavam e hora repetiam coisas que haviam ouvido da boca de seus pais.

Não o encontrou. Continuou a vagar sem destino pelo Banhado, apoiando a cauda do vestido no braço, lado a lado com a estrada de ferro. A noite caiu, até que ao longe, Benedita ouviu o apito do trem.

Julgada e culpada pelo próprio abandono, a moça flutuou para o meio dos trilhos e esperou. Recusou-se a mexer qualquer músculo, seja pra correr ou para fechar os olhos. Sentiu cheiro de crisântemos. Soltou a cauda do vestido e permitiu que o branco dele fosse substituído por vermelho e os tons de terra do chão e da ferrugem das rodas de ferro.

Desde então, ela vaga pelos trilhos do trem com a mão estendida assombrando aquele chão. O lugar do desastre ficou marcado por décadas. As crianças morriam de medo de passar pela linha do trem à noite. As mães colocavam medo nas meninas, dizendo que se não se comportassem, não iriam encontrar marido, ou até acabariam como a Noiva do Banhado.

O tempo passou e a lenda continuou presente nos trilhos de São José. Um dia, meus amigos me desafiaram a ir até a linha do trem. Eu, que era moço de fibra, não me amedrontei. Por fora, porque dentro das calças minhas pernas tremiam. Atravessei o brejo depois da chuva, afundando metade das canelas, enchendo as botas de lodo; fui chegando perto da linha do trem. Fiquei ali por uma hora. Até que as estrelas e a lua se apagaram e a noite ficou mais escura. Um cheiro forte de crisântemo subiu do chão, sem ter flor nenhuma. O apito do trem, sem ter trem nenhum.

De repente, um vulto branco. Ela tomou forma ao longe e veio na minha direção. Eu respirei forte, segurei o grito de pavor dentro da goela, e corri na direção contraria até tropeçar e cair. Em estado de choque e sem conseguir me mover, vi a Noiva do Banhado se aproximar lentamente, com a mão estendida em minha direção. Por fim, ela parou na minha frente, a luz da lua refletida no vestido branco cegava quase por completo minha visão. A única coisa que eu conseguia ver era a aliança presa em seu dedo. A noiva parecia insistir que eu tocasse sua aliança e, como num impulso, estendi minha mão, segurei a mão da defunta e ela sumiu. Virou pétala de flor. A única coisa que sobrou foi a aliança, na palma da minha mão fechada. A única coisa que a prendia nesse chão, como uma corrente que a prendesse àquele casamento, mesmo depois de morta. Desde então, nunca mais viram a Noiva do Banhado vagando pela estrada de ferro.

 

*****

A segunda Benedita eu conheci em vida, quando eu nasci, essa era minha avó. Mas ela já morreu também. Essa Benedita estava prometida a Zé Luis, um moço bem apessoado, que morava próximo da casa da roça da família dela, em São Francisco Xavier (SP). Ou era no Rio do Peixe? Um dos dois.

Eles se casaram, mas essa não era a vontade dela. Triste com o casamento, ela fugiu, foi embora e largou o marido para trás. Foi parar em São José dos Campos, lá pros lados de Santana, onde depois dum tempo arranjou um novo casamento. Com o novo marido, teve cinco filhos. Viveu do jeito que conseguia viver com seu trabalho, o do marido e algumas ajudas do pai e do sogro.

O tempo se encarregou de fazer seu trabalho. Um dia, o novo marido, que a essa altura já não era mais tão novo, foi preso, deixando sobre a mulher a responsabilidade de cuidar da casa e das crianças.

Zé Luis havia ido de mudança para São José também. Arrumou casamento, mas não teve filhos. E quando ficou sabendo do ocorrido, tratou de procurar Benedita. A mulher agora tinha um bar, de onde tirava o sustento dos filhos, trabalhando todas as noites.

Ele apareceu cheio das palavras bonitas. Com flores pela manhã, um fumo de rolo pela tarde e juras de amor ao anoitecer. Ela cedeu. Ele largou a mulher, comprou um pedaço de terra depois do rio e construiu quatro cômodos para ela e as crianças morarem. Com sala, cozinha, o quarto das crianças e um quarto para o casal, com uma cama de madeira pesada e dois criados mudos, um de cada lado. Do lado dela, ela guardava o dinheiro e a caderneta do bar onde anotava quem tinha comprado fiado. Do lado dele, a carteira, uns cigarros e um revolver velho que tinha sido do seu pai, mas que ainda funcionava bem.

Um dia, ao fechar o bar, ela percebeu a ausência de Zé Luis. Foi sozinha para casa. Ele não estava lá. Não teve duvidas, mais uma vez ele tinha ido para a casa da ex-mulher, com quem não tinha cortado totalmente as relações. No quarto, no criado mudo do lado dele, o revolver.

Ela saiu em direção à casa da ex-mulher do marido, seguida pelas filhas mais velhas que iam pulando atrás. Cortou caminho pelo morro, passou em frente à igreja, cruzou a ponte de madeira sobre o córrego e seguiu pela linha do trem, chegou. Bateu na porta e ele abriu.

- Vamos embora - disse calma, mas com a voz pesada.

- Espera um pouco - ele respondeu.

- Vamos embora, agora! - repetiu levantando o revolver na direção do peito de Zé Luis. Ela abriu caminho para ele passar. Zé Luís passou resmungando.

- O que você falou? - ela perguntou, pesando ainda mais a voz. Ele ficou quieto.

Alguns metros depois, voltou a resmungar.

- Se você der mais um pio, você vai ouvir essa arma cantar!. Ele piou. Ela apertou o gatilho e uma bala passou zunindo no pé da orelha do Zé Luis, que seguiu o caminho todo mansinho.

Benedita teve a sexta filha. O casamento desandou. Ela continuou no bar. Conheceu o pai da sétima filha, que só ela sabia quem era. Zé Luis não apareceu mais, até ficar velho e doente, quando ela ajudou a cuidar.

Minha tia que me contou. Ela dizia que a minha avó era ruim, ruim demais. Mas eu não acho que minha avó estava errada não. Quando você é bonzinho demais, o mundo lhe engole. Ainda mais se você for mulher.

​

Nota: O conto “Beneditas que a linha do trem liga e a Noiva do Banhado”, é a junção da lenda urbana sobre a noiva que se atirou na linha do trem em São José dos Campos e o relato oral sobre a história de casamento de Benedita Venancio.

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+ Sobre a Noiva do Banhado

 

A história da Noiva do Banhado é praticamente uma das inúmeras lendas urbanas de São José dos Campos. De acordo com as histórias orais contadas pelos mais antigos, a lenda da Noiva do Banhado  aconteceu no final do século XVIII, quando uma jovem abandonada no altar se atirou na linha do trem e passou a vagar durantes as noites pelos trilhos.

 

+ Sobre a Estação Central de São José dos Campos

A estação de São José dos Campos (a original) foi inaugurada pela E.F. do Norte em 1876. Devido a um grande desastre ocorrido na cidade por causa de uma curva de difícil manejo, a EFCB decidiu mudar o traçado da ferrovia, criando uma nova variante pela várzea (o chamado Banhado), que tangenciava a cidade pelos campos de Santana, local da nova estação. O medo de que a mudança da estação esvaziasse economicamente o Centro gerou oposição na cidade, liderada por Napoleão Monteiro, editor do “Correio Joseense”. O seu prestígio e os seus vínculos com o Partido Republicano chegaram a paralisar as obras, passando-se a estudar a transferência apenas do terminal de cargas, permanecendo a estação de passageiros no local original, além da proposta de que fossem rebaixados os trilhos, mantendo entrincheirada a ferrovia. Porém, as obras da nova estação foram iniciadas em julho de 1922 e o prédio foi inaugurado, agora na avenida Sebastião Gualberto, em 04 de setembro de 1925, exatamente às 4 da tarde, com banda de música e tudo.

Poucos meses antes disso, porém, a Central tentou dar à futura nova estação o nome de DoutorDutra, engenheiro da ferrovia, o que gerou inúmeros protestos na cidade.

No mesmo dia da inauguração da estação, foi aberta a variante de 7,120 km, fechando-se então dois postos provisórios nos kms 387 e 392 que ficavam nos entroncamentos da linha velha com a variante. Comparando-se as datas de abertura da Tecelagem Parahyba, que iniciou as obras em 1925 e abriu a produção em 1927, ao lado do pátio da estação, não é muito difícil imaginar que a transferência da linha e da estação para a parte baixa da cidade não foi apenas uma questão de melhoria de traçado.

Para trens de passageiros, em teoria o último deve ter parado ali em janeiro de 1991, quando suspenderam os últimos que corriam na linha - o Trem de Prata, criado depois, entre 1994 e 1998, não parava em estação intermediária nenhuma da linha Rio-São Paulo.

Hoje em dia, é comum ver trens manobrando em seus desvios mesmo aos fins de semana. O prédio da estação, por sua vez, ficou abandonado por muitos anos, sendo restaurado em 2016 pela MRS Logística, proprietária do prédio, e contou com a parceria da Prefeitura de São José dos Campos e da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR).

 

Fonte: www.estacoesferroviarias.com.br/s/sjcampos.htm

 

 

Nota da FCCR: De acordo com registros históricos, a estação central não se instalou no Banhado. A estação central de São José dos Campos localizava-se onde atualmente é a Estação de Tratamento da Sabesp, no final da avenida João Guilhermino. No banhado, havia o trilho do trem e há registro de uma edificação que pode ou não ser propriedade da estação. As paradas existentes, inclusive no registro da  Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA),  são as estações Central, Eugênio de Melo, a Limoeiro, a Martins Guimarães e a Parada Lima, não havendo outro registro de estação ou parada na cidade.

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