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O CLUBE DE XADREZ DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

 

Conto ficcional a partir de relato oral de Abraão Salem

por Ricardo Salem

 

São José dos Campos (SP) formou-se a partir de povos de diferentes nacionalidades. Por aqui se instalaram pessoas vindas de vários países. Japoneses, coreanos, libaneses, entre outros. Muitas famílias vinham tratar da saúde em decorrência da tuberculose, que era o mal do século, outros vinham em busca de novas oportunidades. Já outras famílias vinham em fuga das guerras, entre elas a primeira e segunda guerras mundiais, entre 1914 e 1945.

Os Salem, oriundos do Líbano, eram uma delas. Formada pelo casal Kalil e Julia Salem, e pelos filhos Abrão, Virginia e Paulo, o caçula, a família morou em Campo Grande (MS) e Rio de Janeiro (RJ), mas foi em São Paulo (SP) que constituiu raízes. Eles abriram uma loja de armarinhos na Rua 25 de março, que no início do século já era um dos maiores centros comerciais populares da capital.

Os pais se dedicavam aos negócios da família, ao mesmo tempo em que procuravam passar o ofício comercial aos filhos. No entanto, Paulo, ainda criança, já mostrava habilidades para o cálculo e jogos de tabuleiro, como o xadrez, que teve contribuições dos povos árabes. A participação desses povos, sobretudo após o advento da religião islâmica, foi fundamental para a expansão do xadrez pelos continentes asiático e europeu.

De origem árabe, o jogo encantava Paulo. Suas regras precisas para cada uma das seis peças - peão, torre, cavalo, bispo, rainha e rei -, além da diversão, exigiam do jogador grandes estratégias.

Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial e iminência da Guerra Civil Russa, que envolveu Turquia e países próximos, o casal Kalil e Julia decidiu vender todo o estoque da loja na capital paulista, trancá-la e partir para a Itália, investir na educação dos filhos. Na viagem de navio, Kalil contraiu gripe espanhola e morreu, e Julia, abalada emocionalmente, acabou enlouquecendo. Os três irmãos se viram órfãos. Abrão, o mais velho, assumiu com destreza a educação dos irmãos.

De volta ao Brasil, que naquele período tinha ido à bancarrota com a crise da bolsa de valores de 1929, causando uma grande recessão econômica para fazendeiros e empresários, Abrão teve a notícia que a loja da família havia sido perdida com o fisco nos bancos. Com pouco dinheiro, o jovem passou a trabalhar dia e noite para educar e sustentar os dois irmãos mais novos. Virgínia se casou ainda adolescente com um rico empresário; Paulo, o caçula, desenvolveu habilidades para as artes plásticas, pintando alguns quadros, enquanto se dividia na profissão de mascate com o irmão Abrão.

Além das artes, Paulo desenvolveu o gosto pelos jogos de tabuleiro, cigarro, café e também pela vida boêmia e noturna. Entre jogos, cigarros, doses de wisky e café, ele viveu os melhores anos de sua juventude, desfrutando dos prazeres da vida. No pequeno salão de jogos, uma névoa branca de nicotina pairava no ar. Em pouco tempo, os pulmões de Paulo foram acometidos pela tuberculose, obrigando-o a uma mudança radical em seu estilo de vida.

Paulo: – Abrão, me perdoa... (tirando um lenço com mancha de sangue).

Abrão: – O que é isso, meu irmão? É o seu pulmão? Por Alá, você não pode mais continuar nessa vida, vai se matar! Eu vou te internar em São José dos Campos!

Paulo: - São José dos Campos? O que eu vou fazer lá no meio da caipirada? O único jogo que deve ter lá é chutar bosta de vaca...

Abrão: – Que jogo o quê? Não pensa mais nessa desgraça. (Ao passar-lhe o tabuleiro de xadrez, diz:) - Esse vai ser seu único jogo permitido, o que vai te salvar! 

Em 1933, Paulo foi para São José dos Campos, para tratamento contra a tuberculose no Sanatório Vicentina Aranha, conhecida então como estância climática - os ares joseenses eram famosos pela cura.

Nesse período, seu irmão Abrão trabalhava como mascate no Paraguai e passou a enviar uma quantia mensal de 240 mil réis; para custear a internação do irmão caçula. Recluso no sanatório, Paulo passava seus dias e noites acompanhando a vida bucólica da cidade - muito verde, céu azul e uma brisa fresca, que aliados ao repouso e medicação, limpavam seus pulmões.

Paulo reencontrou as tintas e as telas e passou a dedicar seu tempo de internação à pintura de paisagens da cidade e outras de sua memória afetiva. Mas o vírus da boêmia não havia sido expurgado, ele apenas adormecia no corpo do jovem Paulo, que em pouco tempo ficou com os pulmões restabelecidos.

Curado da tuberculose, Paulo decidiu permanecer em São José dos Campos e conheceu a jovem Catarina, com quem se casou. A cidade tornou-se mais do que uma simples estância climática, mostrando-se um lugar de possibilidades que começava a ganhar ares de modernidade, com a chegada das indústrias e a expansão do comércio local. Boa parte dessa expansão se deu por pessoas que, curadas da tuberculose decidiram permanecer na cidade. Eram advogados, médicos, enfermeiras, alfaiates, mascates, metalúrgicos, cozinheiras, sapateiros, toda variedade de profissionais que, embora curados da tuberculose, carregavam a mácula do estigma, restando iniciar uma nova vida na interiorana São José dos Campos.

É nesse período que, em retribuição à cidade, Paulo criou o primeiro de Clube de Xadrez de São José dos Campos, estabelecido na Rua XV de Novembro, em cima do famoso restaurante Santa Helena. O clube se consolidou como um dos lugares de entretenimento na cidade, sendo frequentado por amantes do xadrez, entre eles, comerciantes, políticos e outras personalidades.

Paulo passou a dedicar suas noites ao cigarro e ao café, esquecendo até mesmo de sua rainha, a esposa Catarina, que sob a névoa branca da fumaça dos cigarros durante as noites de jogatinas, ficava imperceptível na memória de Paulo.

No tabuleiro de xadrez, o rei não tem valor definido, visto que não pode ser capturado, muito menos trocado durante o curso do jogo. Apegado a esse mito, Paulo virava as noites no clube, consumindo sua saúde em cigarros, café e partidas de xadrez. Sem perceber, a tuberculose que o perseguia como um peão destemido, avançou casa a casa e se instalou novamente em seus pulmões, a essa altura fibrosos, devido à absorção da névoa branca de nicotina, durante as longas noites de jogatina.

Acometido novamente pela tuberculose, desta vez não houve espaço para tratamento. O rei então foi capturado, chegou a hora do xeque-mate, a jogada final da partida. Nessa situação, o rei não pode ser coberto por nenhuma outra peça, nem mover-se para nenhuma outra casa, sem ser tomado por uma peça do adversário. Paulo saiu do tabuleiro aclamado pela persistência em deixar um legado para cidade. Catarina, a rainha, ficou viúva, mas por pouco tempo, uma nova partida teve início em sua vida. Já o Clube de Xadrez joseense trilhou seu caminho, formando novos jogadores no coração de São José dos Campos.

 

Nota: O conto “O Clube de Xadrez da Rua XV de Novembro”, é um texto recriado a partir do relato oral de Abrão Salem, irmão de Paulo Salem, jovem brasileiro, descendente de libaneses que foi internado no Sanatório Vicentina Aranha na década de 40 para tratamento da tuberculose. Durante o período de internação, o jovem desenvolveu suas habilidades para as artes

 

 

+ Sobre os clubes de xadrez de São José dos Campos

O xadrez é um jogo de tabuleiro para dois jogadores. Registros apontam o surgimento na Índia, no século VI. Posteriormente, migrou para a China e para a Pérsia. O jogo é realizado em um tabuleiro com casas brancas e pretas, cada enxadrista controla dezesseis peças com diferentes formatos e características. O objetivo da partida é o xeque-mate (expressão usada para designar o lance que põe fim ao jogo. Desde 2001 o esporte é reconhecido pelo Comitê Olímpico Internacional.

Atualmente São José dos Campos tem aulas de xadrez em diferentes locais, como o Espaço Jovem do Centro da Juventude (Rua Aurora Pinto da Cinha, 131, Jardim América) e o Parque Vicentina Aranha – no Pavilhão Marina Crespi.

 

 

Saiba mais nos links:

Fonte: www.servicos2.sjc.sp.gov.br/noticias/noticia.aspx?noticia_id=28449

www.pqvicentinaaranha.org.br/programacao-detalhe/vicentina/293

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