O JEQUITIBÁ-ROSA DE EUGÊNIO DE MELO, ESCRAVO DA HISTÓRIA
Conto ficcional recriado com base em pesquisa histórica coletada no portal
pró-memória do site da Câmara de São José dos Campos
por Ricardo Salem
O brasão da cidade de São José dos Campos (SP) carrega os dizeres “Aura terraque generosa”, que quer dizer “Generosos são minha terra e os meus ares”. A história conta que São José teve início como aldeia, passou a categoria de vila e posteriormente foi reconhecida como cidade. O que muitas pessoas não sabem é que o solo da maior cidade do Vale do Paraíba foi irrigado com sangue de trabalho escravo de índios e negros, tendo seu pelourinho situado na rua Vilaça, no centro da cidade. A única testemunha desse tempo é uma árvore de 700 anos, que igualmente aos escravos da época foi, açoitada e sobreviveu para nos lembrar de um tempo de muitas lutas e dores.
Situado no distrito de Eugênio de Melo, com 27 metros de altura e 30 metros de diâmetro de copa, a árvore hoje é considerada patrimônio ambiental do Vale do Paraíba. Nos tempos da escravidão, presenciou a fuga de escravos; posteriormente, também serviu de barricada para treinamento com tanques de guerra. Seu caule, incendiado e envenenado na tentativa de apagar resquícios do passado sombrio da cidade. Tantos foram os açoites, inclusive do tempo, que hoje a árvore é amparada com cinturões de aço para se manter de pé, numa tentativa de recuperar sua saúde. Bravamente ela resiste e carrega histórias jamais contadas.
Assim como o Brasil, antes de ser descoberta pelo homem branco, São José dos Campos já era habitada pelos índios no século XVI. Porém, com a chegada dos colonizadores e dos padres jesuítas, os índios foram catequizados e escravizados para a exploração de sua mão de obra.
Em 10 de setembro de 1611, o Rei Felipe, da coroa de Portugal, reconheceu a liberdade dos povos indígenas, admitindo o cativeiro em caso de guerras ou de antropofagia (canibalismo). A lei também regulamentava os aldeamentos indígenas, nos pontos que melhor fossem convenientes aos interesses do Reino de Portugal, dando a esses povos entre um ou dois alqueires de terra para sua sobrevivência, desde que trabalhassem para a coroa.
A organização urbana no plano teórico e prático da aldeia era administrada pelo padre jesuíta Manuel de Leão, cuja principal ocupação era administrar as fazendas e as terras “cedidas” aos índios. Porém, toda a região do Vale do Paraíba sofreu um esvaziamento populacional. Primeiro, pelo enfrentamento dos indígenas, que se revoltaram com o sistema velado de trabalho escravo; segundo, pelas descobertas do ouro nas Minas Gerais e que se estendia pelas terras do vale.
A história é manchada pela ganância do homem branco. A chamada “liberdade” com que jesuítas domesticavam indígenas não agradou a coroa, que decide expulsar os jesuítas do solo joseense em 1759. Nessa época o homem branco se junta aos índios, dando impulso à miscigenação e ao povoamento do Vale do Paraíba. Em julho de 1767, a pequena aldeia de São José é elevada à condição de Vila Nova São José, e intensifica a vigilância sobre a população indígena.
Em 1864, a Vila é elevada à categoria de cidade, ganhando comarca e, em 1871, recebe o nome de São José dos Campos. Nessa época, os índios haviam sido quase todos dizimados. Então a cidade passa a adotar a mão de obra escrava negra, especialmente para atuar na produção cafeeira, até 1886.
O número de escravos encontrados nos inventários e testamentos dos lavradores de São José dos Campos cita entre 10 a 30 trabalhadores escravos.Eram muitos...
José Amâncio, Luzia, Gregório, Maria Getimbrina, Caetano, Constância, João, Inácio... Eram muitos os homens e mulheres negros escravizados e que fugiam para os quilombos escondidos nas altas montanhas do Vale do Paraíba.
Muitos deles fugiam de seus donos e malfeitores. Das teorias comentadas, falavam de um túnel secreto, que ligava a Igreja São Benedito à Igreja Matriz, marco zero da cidade, que por sua vez ligava o templo ao Banhado. O fato nunca foi comprovado.
Sinha 1: - Dizem que esses negros fugitivos usavam um túnel escondido na Igreja São Benedito, conhecida como a “Igreja dos Pretos”. O prédio possuía um túnel secreto para fuga desses homens e mulheres negros e escravizados, que a ligava diretamente à Igreja Matriz, marco zero da cidade!
Sinha 2: - A história que ouvi é que o túnel desembocava no Banhado. Falavam que esse possível túnel serviria para a fuga ou proteção dos escravos no século 19 -. Na igreja, de fato, existe uma parte de madeira no chão, cimentada e concretada, como um alçapão, que poderia dar para algum túnel. Mas isso nunca foi confirmado pelas pesquisas arqueológicas.
Boato ou não, o fato é que quando um negro escravo fugia, seu dono colocava em seu encalço um capitão do mato. A recaptura desses homens e mulheres muitas vezes terminava em pelourinhos, um deles erguido onde é a atual Rua Vilaça, no Centro. Os açoites serviriam como exemplo aos demais escravos, acreditavam os escravocratas. Os recapturados eram amarrados e acoitados até que a mão do capitão do mato se cansasse ou até que não houvesse mais gritos de sofrimento e agonia.
Do alto de seus 27 metros,nas margens da antiga Estrada Velha Rio-São Paulo, num trecho da Estrada Imperial, a única testemunha sobrevivente deste tempo é o jequitibá-rosa. Igualmente a esses homens e mulheres, a árvore foi abrigo de bandeirantes, testemunhou os ciclos da cana de açúcar, do café e do gado leiteiro, sobrevivendo por mais de três séculos.
Na década de 60, sofreu inúmeros incêndios em decorrências de cultos religiosos. Na década de 80, foi usada por uma fábrica de veículos militares que lançavam caminhões e jipes contra seu tronco, ou o acorrentava, na tentativa de derrubá-lo, entre outras agressões. Assim, o homem contribuía para elevar São José dos Campos ao patamar de cidade da indústria e do progresso.
Em 2017, o jequitibá sofreu com um incêndio, passando por um processo de aplicação de fungicida e colocação de cintas para conter lesões em seu caule. Desde então, tem recebido tratamento intensivo e monitoramento constante, com visitas técnicas semanais.
Hoje quem chora é a árvore, por carregar a memória de índios e negros escravizados; chora por ter presenciado a desigualdade social; chora por sofrer ameaças, mas ainda resiste para que essa história não se apague.
+ Sobre o jequitibá-rosa de Eugênio de Melo
Estudos apontam que o jequitibá-rosa situado no bairro de Eugênio de existe cerca de 700 anos. Atualmente é protegido contra corte pelo Decreto Municipal 8259/93.
A conservação do jequitibá de Eugênio de Melo é uma luta antiga e que envolveu até o isolamento da árvore para evitar vandalismo ou mesmo a ação do tempo. A árvore, segundo estimativas, tem 27 metros de altura e 30 metros de diâmetro de copa. Acredita-se que a espécie pode viver cerca de 800 anos.
Saiba mais no estudo “Jequitibá Eugênio de Melo, Patrimônio Histórico/ Ambiental da Cidade de São José dos Campos/SP” - realizado pelos autores: Maiara Sanches, Guilherme Sousa, Marco Antônio Oliveira - Iniciação à Docência –Universidade do Vale do Paraíba.