VÓ PRETA E O SANATÓRIO VICENTINA ARANHA
Conto ficcional a partir de relato oral
por Izildinha Costa
Em 13 de maio de 1888, foi proclamada a abolição da escravidão no Brasil. Mas ela deixou fortes raízes escravocratas nas famílias brasileiras, muitas marcadas pelos serviçais negros, que atendiam as famílias mais abastadas, sustentando essa cadeia de trabalho, entre patrões e empregados, por inúmeras gerações.
Maria Aparecida da Silva era neta e filha de escravos. Quando nasceu, sua mãe trabalhava na casa de um homem muito bom, um italiano de posses, chamado Gabriel, que veio com sua esposa Miquelina abrir um negócio no Brasil. A mãe de Maria Aparecida fazia de tudo na casa dos patrões: lavava, passava, engomava, cozinhava, cuidava da casa, das roupas, de tudo. Enquanto Maria ficava ao seu lado para aprender o serviço de casa.
Seu Gabriel e Dona Miquelina tiveram um filho e colocaram o nome de Gabriel também. Disseram que era um costume da época. E assim o tempo foi passando naquela casa em São Paulo (SP). Gabriel cresceu, se tornou um moço bonito, estudado, que tocava violino e trabalhava na granja de seu pai. Nesse período, Maria Aparecida, já adulta, dividia alguns dos serviços com sua mãe.
Nessa época, uma epidemia de tuberculose tomava conta do Brasil. E numa das madrugadas em que Gabriel estava virando os ovos da granja de seu pai, começou a tossir, e assim seguiu nos dias seguintes. O Bacilo de Koch tinha o encontrado.
Seus pais decidiram mandá-lo para São José dos Campos (SP), onde se encontrava o maior centro de tratamento de tuberculose da América Latina, o Sanatório Vicentina Aranha. Reconhecido como o mais completo e como melhor sanatório para tratamento da tuberculose, o Vicentina Aranha tinha conjunto arquitetônico com inúmeros pavilhões, leitos e ampla área verde que possibilitava aos internos ter acesso a um ar mais puro.
Maria ajudou a mãe arrumar as malas de Gabriel. Foi uma despedida dolorosa, mas necessária para recuperação do rapaz, que levava, além da esperança de cura, uma mala e seu violino.
Gabriel chegou no Vicentina Aranha e se instalou no melhor pavilhão. Destinado para as pessoas de posses, tinha até banheiro no quarto. Os pavilhões isolados eram interligados por meio de galerias cobertas; ficavam próximos à casa do diretor, permitindo uma inspeção zelosa e imediata. Foram colocados simetricamente em torno de uma vasta praça, com aqueles destinados aos homens à direita, e os das mulheres, à esquerda.
Com centenas de leitos, o Vicentina Aranha tornou-se uma cidade paralela a São José dos Campos. Os internos eram proibidos de sair para além dos muros, por isso era necessário criar uma vida social para que as pessoas não enlouquecessem lá dentro.
Entre os internos, havia muitos jovens, que concomitantemente se enamoravam de outras internas e até enfermeiras. Os encontros ocorriam durante os eventos sociais, como os bailes e concertos musicais, com apresentação dos próprios pacientes.
Gabriel começou seu tratamento e, para passar o tempo no pavilhão masculino, gostava de tocar seu violino na sacada e nos jardins, acalentando colegas internos. Do outro lado do sanatório, no pavilhão feminino, a jovem Diva animava as tardes de meninas e senhoras com músicas de Carmem Miranda tocadas ao piano. Talentosos, ambos foram escalados como músicos para animar os bailes, festas e quermesses do Vicentina Aranha. E nesse encontro musical, Gabriel conheceu Diva, a pianista, que com seus acordes e leveza, conquistou os ouvidos e o coração do jovem violinista.
Como diz o poeta, “Qualquer amor é um pouquinho de saúde....” e, de baile em baile, de acorde em acorde, em meio às medicações e à luta pela cura da tuberculose, o casal se uniu na música, animando os bailes do sanatório.
Naquela rotina de tratamentos e eventos internos, algumas paixões eram interrompidas pela alta de pacientes que se curavam. Muitos casais, para enganar a separação obrigatória, costumavam utilizar o escarro tuberculoso do parceiro para se passar por doentes e continuarem juntos no hospital. Na contramão desse artifício, Gabriel e Diva se curaram juntos e voltaram para São Paulo.
Maria Aparecida ficou tão feliz quando o Gabriel voltou. Trouxe com ele uma moça bonita, de finas mãos. A casa encheu-se de música. Logo casaram e tiveram um filho, e criatividade pra colocar o nome: Vicente. Gabriel voltou a trabalhar na granja e ajudava o pai a cuidar dos negócios da família.
Os dias foram passando. Vicente já estava com um ano quando Gabriel voltou a adoecer. Decidiram voltar para São José dos Campos. Além da esperança de cura, Gabriel levava: uma mala e seu violino, sua esposa Diva, seu filho Vicente e Maria Aparecida, para ajudar a cuidar de tudo.
Chegando em São José, a família se instalou numa casa, em um grande terreno ao lado do Sanatório Vicentina Aranha. Gabriel começou o tratamento novamente, mas dessa vez não teve sucesso, falecendo em 1936. Diva, que a essa altura também estava com tuberculose pela segunda vez, morreu um ano depois, com a doença agravada pela saudade. Já não se ouviam mais os acordes do casal, ficaram somente Maria Aparecida e o pequeno Vicente, que naquela época já esboçava as primeiras palavras e chamava Maria Aparecida de Vó Preta, a quem teceu um grande afeto. Porém, para segurança do menino, em meio à epidemia de tuberculose, seus parentes decidiram levá-lo para ser criado em Minas Gerais, até que estivesse mais forte e seguro de saúde.
Maria Aparecida ficou morando em São José dos Campos, cuidando da casa do finado casal. Com o tempo, arrumou um emprego no sanatório. Encontrou uma forma de amenizar a saudade do filho do coração, vivendo em um dos locais no qual o jovem Gabriel foi feliz. No Vicentina Aranha, ela fazia tudo que tinha aprendido com sua mãe: lavava, passava, cuidava dos enfermos, enfim, se ocupava para driblar a solidão e o vazio pela falta da família e do pequeno Vicente.
Alguns anos se passaram e Vicente voltou. Menino novo que estudou, cresceu, virou um homem bom. Como seu pai e seu avô, trabalhador. Maria Aparecida, já mais velha, continuou sendo a Vó Preta a quem Vicente tanto amava, e sua missão em cuidar do rapaz continuou. Vicente casou e teve quatro filhos, os quais Vó Preta ajudou a criar. Ficaram morando todos juntos naquele terreno grande, ao lado do Sanatório Vicentina Aranha. A casa era cheia de gente e alegria.
Maria Aparecida viveu com eles até o fim de sua vida. Não teve filhos pra quem deixar a herança que sua mãe havia lhe deixado: a servidão. Mas sabe que deixou saudade no coração de cada um que ajudou a criar.
+ Sobre o Sanatório Vicentina Aranha
Texto: Fundação Cultural Cassiano Ricardo
No começo do século XX, a tuberculose, assim como outras doenças epidêmicas (varíola, tifo e febre amarela), preocupava e exigia uma ação social efetiva. Vicentina de Queiroz Aranha, esposa do senador Olavo Egídio, que atuava no combate à doença, iniciou uma campanha para a construção de um sanatório que tratasse os tuberculosos e lhes dessem assistência. Vicentina faleceu em 1916, mas sua campanha prosseguiu, mesmo após sua morte. Em março de 1914, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo adquiriu uma chácara em São José dos Campos, através de donativo feito pela Câmara Municipal de São Paulo, para a construção desse sanatório para tuberculosos. A escolha da cidade se deu devido ao clima, considerado ideal para o tratamento da doença.
O Vicentina Aranha foi o primeiro sanatório a ser construído em São José dos Campos. Sua construção foi iniciada em 1918. Foi inaugurado seis anos depois, em 1924, entrando em funcionamento mesmo antes de estar concluído.
Reconhecido como o mais completo e com o melhor arranjo espacial, expresso na estrutura formal e funcional do conjunto arquitetônico, e apontado como um dos maiores da América Latina, o Sanatório Vicentina Aranha configura-se como a obra mais importante do período de São José dos Campos, denominado Fase Sanatorial. Além do elevado padrão de serviço oferecido, serviu como referência obrigatória para outras edificações feitas no município com as mesmas finalidades.
O Vicentina Aranha está localizado numa parte da cidade que foi denominada, a partir de 1932, Zona Sanatorial – hoje uma área de uso residencial de alto valor imobiliário. Incrustado em uma área verde de consideráveis proporções, era, até sua aquisição pelo município, em 2006, cercado por muros de alvenaria em toda a sua extensão. (Hoje, os muros deram lugar às grades.)
O Vicentina Aranha é um sanatório constituído por mais de um edifício, o que faz dele um hospital do tipo pavilhonar, formando um verdadeiro conjunto arquitetônico, ou seja, cada edificação justifica-se simultaneamente como abrigo para uma atividade específica e como parte integrante de um sistema que a envolve.
Seus pavilhões se harmonizam com as edificações principais e complementados por edificações de apoio, anexos à capela.
O conjunto está distribuído num terreno que, em 1929, ocupava uma área de 488 mil metros quadrados. Seus limites se iniciavam na Rua Engenheiro Prudente Meireles de Moraes, até hoje a parte frontal, descendo as laterais pelas avenidas São João e Nove de Julho, até atingir as margens do Ribeirão Vidoca.
Parte significativa da área ocupada originalmente foi loteada na década de 1970 para fins habitacionais, dando origem a bairros residenciais, como Jardim Apollo e Vila Ema. Atualmente, a área total do antigo Sanatório Vicentina Aranha é de cerca de 84,5 mil metros quadrados.
De área edificada, são cerca de 12 mil metros quadrados, distribuídos em pavilhões específicos para cada tipo de atividade. Além do centro cirúrgico, localizado no Pavilhão Central, as construções que se destacam são os alojamentos para os enfermos, divididos em pavilhões femininos e masculinos, somando 284 leitos. Merecem atenção também as edificações destinadas à manutenção e serviços, tais como o pavilhão da cozinha, a despensa, o frigorífico e o refeitório, além de anexos como lavanderia, coradouro, oficinas, casa de máquinas, almoxarifado, fábrica de sabão, cabine de força, reservatório de água, reservatórios do óleo diesel das bombas, decantador, incinerador e chaminé. Edificações secundárias foram necessárias para dar suporte às atividades complementares, como a granja, a pocilga e o edifício para depósito de ferramentas. Faziam parte deste conjunto, ainda, as garagens, as rampas para lavagem de veículos e o abrigo para bicicletas.
A implantação e distribuição dos vários pavilhões se dão de forma simétrica e hierárquica, a partir do eixo central da composição estabelecido pelo Pavilhão Central. Os dois grandes pavilhões térreos, Pavilhão São João, para homens, e Pavilhão São José, para mulheres (indigentes), estão alocados, respectivamente, à esquerda e à direita do Pavilhão Central, um monobloco vertical em três pavimentos, de alas enviesadas, servido por escada e elevador, este último instalado em 1938, 14 após a inauguração do edifício.
Os edifícios destinados ao alojamento de doentes estão voltados para as faces leste e norte, garantindo boa insolação. Os setores de serviço, assim como os ambientes do setor médico-cirúrgico, concentram-se na face sul, recebendo pouca incidência de luz solar.
O setor administrativo foi construído em um edifício à parte, ao contrário do que é usualmente encontrado em projetos europeus.
Os dois pavilhões pequenos, também ao rés-do-chão, para pensionistas contribuintes, com a mesma distribuição por sexo, situam-se atrás dos grandes pavilhões e, respectivamente, à direita e à esquerda do Pavilhão Central.
A cozinha e o refeitório, em edifício separado, ficam imediatamente atrás do Pavilhão Central, no mesmo alinhamento dos pavilhões pequenos. Mais atrás e à direita localiza-se o pavilhão da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, construído em um pavimento, porém com maiores dimensões que os anteriores. Tem a mesma forma do Pavilhão Central, ou seja, alas laterais enviesadas.
Na sequência, vêm a capela, (localizada exatamente no eixo central, estabelecido pelo alinhamento do Pavilhão Central), o jardim (localizado a sua frente), a cozinha e o refeitório, nos fundos. Em seguida tem-se a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, ponto de reunião das irmãs da Irmandade São José, que trabalhavam no sanatório.
Além de um edifício de dois pavimentos, para o abrigo das religiosas que administravam o sanatório, foi construída uma série de casas isoladas para o alojamento dos funcionários, localizadas à esquerda e ao fundo do conjunto principal. Os anexos necessários à administração e à manutenção deste complexo foram distribuídos pelo terreno, sempre em direção aos fundos, resguardando-se os pavilhões principais.
Além das edificações o Sanatório está em meio a uma área de vegetação com cerca de 44 mil metros quadrados, separada em canteiros com paisagismo e canteiros com bosque; nesses últimos, encontram-se algumas espécies raras e centenárias como mogno, peroba rosa, jequitibá, jacarandá da Bahia, gonçaloalves, pau mulato, jatobá, brauna preta, araribá, guarantã, cabreúba vermelha, louro pardo e outros.
Este conjunto arquitetônico é amplamente reconhecido pela comunidade como um dos mais importantes da Fase Sanatorial. Em termos arquitetônicos, é uma referência das primeiras manifestações da modernidade no Vale do Paraíba, sendo protegido como patrimônio histórico estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat).
Fontes utilizadas
Jornal Valeparaibano – edições de 1973 a 2004.
Correio Joseense – edições de 1922 a 1935.